Software, o motor das sociedades contemporâneas
(Publicado originalmente em Perissinotto, Paula & Barreto, Ricardo. Tradução de Cicero Inacio da Silva. Catálogo do FILE 2008 000 de pixels. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008)
No início da década de 1990, as mais fabulosas marcas globais eram as empresas que produziam bens materiais ou processavam matéria física. Hoje, porém, a lista de marcas globais mais reconhecidas é encabeçada por nomes como Google, Yahoo e Microsoft (na verdade a Google foi a número 1 mundial em 2007 em termos de reconhecimento de marca). E, pelo menos nos EUA, os jornais e revistas mais lidos - New York Times, USA Today, Business Week, etc. - apresentam diariamente notícias e reportagens sobre YouTube, Myspace, Facebook, Apple, Google e outras companhias de TI.
No início da década de 1990, as mais fabulosas marcas globais eram as empresas que produziam bens materiais ou processavam matéria física. Hoje, porém, a lista de marcas globais mais reconhecidas é encabeçada por nomes como Google, Yahoo e Microsoft (na verdade a Google foi a número 1 mundial em 2007 em termos de reconhecimento de marca). E, pelo menos nos EUA, os jornais e revistas mais lidos - New York Times, USA Today, Business Week, etc. - apresentam diariamente notícias e reportagens sobre YouTube, Myspace, Facebook, Apple, Google e outras companhias de TI.
E as outras mídias? Se você acessar o site da CNN e navegar pela seção de economia, verá indicadores de mercado de apenas dez empresas e índices exibidos à direita da homepage. Apesar de a lista mudar diariamente, é provável que sempre inclua algumas dessas mesmas marcas. Vejamos o exemplo de 21 de janeiro de 2008. Naquele dia a lista da CNN consistia nas seguintes empresas e índices: Google, Apple, S&P 500 Index, Nasdaq Composite Index, Dow Jones Industrial Average, Cisco Systems, General Electric, General Motors, Ford, Intel.
Essa lista é muito reveladora; as empresas que lidam com produtos físicos e energia aparecem na segunda parte da lista: General Electric, General Motors, Ford. Depois temos duas companhias de TI que fornecem hardware: a Intel faz chips de computador, enquanto a Cisco faz equipamentos para redes. E as duas empresas no topo, Google e Apple? A primeira parece estar no ramo da informação, enquanto a segunda faz equipamentos eletrônicos de consumo: laptops, monitores, tocadores de música etc. Mas, na verdade as duas estão fazendo outra coisa. E aparentemente essa outra coisa é tão crucial para o funcionamento da economia americana - e, conseqüentemente, também a global - que essas companhias aparecem quase diariamente no noticiário econômico. E as grandes companhias de internet que também saem no noticiário diariamente - Yahoo, Facebook, Amazon, Ebay - estão no mesmo negócio.
Essa "outra coisa" é software. Máquinas de busca, sistemas de recomendação, aplicativos de mapeamento, ferramentas para blogs, clientes de mensagem instantânea e, é claro, plataformas que permitem que outros escrevam novos softwares - Facebook, Windows, Unix, Android - estão no centro da economia global, da cultura, da vida social e, cada vez mais, da política globais. E esse "software cultural" - cultural no sentido de que é usado diretamente por centenas de milhões de pessoas e carrega "átomos" de cultura (mídia e informação, assim como interação humana ao redor dessa mídia e informação) - é somente a parte visível de um universo de software muito maior.
Softwares controlam o vôo de um míssil inteligente em direção a seu alvo na guerra, ajustando seu curso durante o vôo. Softwares administram os estoques e linhas de produção da Amazon, Gap, Dell e diversar outras empresas, permitindo que elas reúnam e despachem objetos materiais ao redor do mundo, quase instantaneamente. O software permite que as lojas e os supermercados reabasteçam automaticamente suas prateleiras, assim como determinam automaticamente quais artigos devem entrar em liqüidação, por quanto tempo, quando e em que lugar da loja. O Software, é claro, é o que organiza a Internet, encaminha mensagens de e-mail, escolhe as páginas da web em um servidor, dirige o tráfego na rede, atribui endereços de IP e apresenta as páginas da web em um browser. A escola e o hospital, a base militar e o laboratório científico, o aeroporto e a cidade - todos os sistemas sociais, econômicos e culturais da sociedade moderna - são acionados via software. O software é a cola invisível que une tudo e todos. Enquanto vários sistemas da sociedade moderna falam línguas diferentes e têm objetivos diferentes, todos compartilham as sintaxes do software: declarações de controle "se/então" e "enquanto/faça", operadores e tipos de dados que incluem caracteres e números de pontos flutuantes, estruturas de dados como listas e convenções de interface que abrangem menus e caixas de diálogo.
Se a eletricidade e o motor a combustão tornaram possível a sociedade industrial, similarmente o software permite a sociedade da informação global. Os "trabalhadores do conhecimento", os "analistas de símbolos", as "indústrias criativas" e as "indústrias de serviços" - todos esses agentes vitais da sociedade da informação não podem existir sem o software. Os softwares de visualização de dados usados por um cientista, os softwares de planilhas usados por um analista financeiro, os softwares de webdesign usados por um designer que trabalha para uma agência de publicidade internacional, os softwares de reservas usados por empresas aéreas. O software é também o que move o processo de globalização, permitindo que as companhias distribuam nódulos administrativos, instalações de produção, canais de estocagem e consumo ao redor do mundo. Qualquer que seja a dimensão da existência contemporânea em que uma teoria social tenha se concentrado nos últimos anos - sociedade da informação, sociedade do conhecimento ou sociedade em redes - todas essas novas dimensões são possibilitadas pelos softwares.
Paradoxalmente, enquanto os cientistas sociais, filósofos, críticos culturais e teóricos da mídia e das novas mídias parecem ter coberto todos os aspectos da revolução de TI, criando novas disciplinas como cibercultura, estudos da internet, teoria das novas mídias e cultura digital, o motor subjacente que impele a maioria desses temas - o software - recebeu pouca ou nenhuma atenção direta. O software continua invisível para a maioria dos acadêmicos, artistas e profissionais da cultura interessados em TI e suas conseqüências culturais e sociais (uma exceção importante é o movimento Open Source e as questões relacionadas a direitos autorais e IP que foram extensamente discutidos em muitas disciplinas acadêmicas). Mas se limitarmos as discussões críticas às noções de "ciber", "digital", "internet", "redes", "novas mídias", ou "mídia social", nunca poderemos captar o que há por trás da nova mídia representacional e de comunicação e compreender o que ela realmente é e o que faz. Se não abordarmos o software em si, corremos o perigo de sempre lidar somente com as suas conseqüências, em vez das causas: o produto que aparece na tela de um computador, e não os programas e as culturas sociais que geram esses produtos.
"Sociedade da informação", "sociedade do conhecimento", "sociedades em redes", "mídia social" - não importa qual nova característica da existência contemporânea examinada por uma determinada teoria social, todas essas novas características são possibilitadas pelos softwares. Está na hora de nos concentrarmos nele.
O que são os "estudos do software"?
Este artigo pretende contribuir para o desenvolvimento do paradigma intelectual dos "estudos do software". O que são os "estudos do software"? Aqui estão algumas definições. A primeira vem do meu livro The Language of the New Media (concluído em 1999 e publicado pela MIT Press em 2001), no qual, até onde eu sei, apareceram pela primeira vez os termos "estudos do software" e "teoria do software". Eu escrevi: "A nova mídia pede uma nova etapa na teoria da mídia, cujos primórdios podem ser atribuídos às obras revolucionárias de Marshall McLuhan nos anos 1950. Para compreender a lógica da nova mídia, precisamos recorrer à ciência da computação. É lá que poderemos encontrar os novos termos, categorias e operações que caracterizam a mídia que se tornou programável. Dos estudos de mídia, passamos para algo que pode ser chamado de estudos do software; da teoria da mídia, para a teoria do software".
Lendo essa declaração hoje, sinto que há necessidade de certos ajustes. Ela coloca a ciência da computação como uma espécie de verdade absoluta, um dado que pode nos explicar como funciona a cultura na sociedade do software. Mas a ciência da computação em si faz parte da cultura. Portanto, creio que os Estudos do Software têm de investigar tanto o papel do software na formação da cultura contemporânea, quanto as forças culturais, sociais e econômicas que moldam o próprio desenvolvimento do software.
O livro que demonstrou pela primeira vez de maneira abrangente a necessidade da segunda abordagem foi o "The New Media Reader", editado por Noah Wardrip-Fruin e Nick Montfort (MIT Press, 2003). A publicação dessa antologia pioneira foi a base para o estudo histórico do software em relação com a história da cultura. Embora o livro não usasse explicitamente o termo "estudos do software". Ao justapor sistematicamente textos de pioneiros da computação cultural e artistas chaves que atuaram nos memos períodos históricos, essa obra demonstrou que ambos pertenciam às mesmas áreas do conhecimento. Isto é, com freqüência a mesma idéia foi articulada simultaneamente no pensamento de artistas e de cientistas que estavam inventando a computação cultural. Por exemplo, a antologia começa com a história de Jorge Luis Borges (1941) e o artigo de Vannevar Bush (1945) que contém a idéia de uma grande estrutura ramificada como a melhor maneira de organizar dados e representar a experiência humana.
Em fevereiro de 2006, Matthew Fuller, que já tinha publicado um livro pioneiro sobre o software como cultura (Behind the Blip, Essays on the Culture of Software, 2003), organizou o primeiro Software Studies Workshop no Instituto Piet Zwart em Roterdam. Para apresentar a oficina, Fuller escreveu: "O software é muitas vezes um ponto cego na teorização e no estudo da mídia digital computacional e em rede. É o próprio terreno e 'matéria' do design de mídia. Em certo sentido, todo trabalho intelectual é hoje "estudo do software", pois o software fornece sua mídia e seu contexto, mas há poucos lugares em que a natureza específica, a materialidade do software, pode ser estudada como uma questão de engenharia".
Concordo totalmente com Fuller em que "todo trabalho intelectual hoje é 'estudo do software'. Mas ainda vai levar algum tempo para que os intelectuais o percebam. No momento em que escrevo isto (primavera de 2008), estudos do software é um novo paradigma de investigação intelectual que está apenas começando a surgir. O primeiro livro que tem esse termo no título foi publicado pela MIT Press em 2008 (Software Studies: a lexicon, editado por Matthew Fuller, MIT Press, 2008). Ao mesmo tempo, várias obras publicadas pelos principais teóricos da mídia de nosso tempo - Katherine Hayles, Friedrich A. Kittler, Lawrence Lessig, Manuel Castells, Alex Galloway e outros - podem ser identificadas retroativamente como pertencentes aos estudos do software. Portanto, acredito firmemente que esse paradigma já existe há vários anos mas não batizado explicitamente até agora (em outras palavras, o estado dos "estudos do software" é semelhante ao das "novas mídias" no início dos anos 1990).
Em sua introdução à oficina de 2006 em Roterdam, Fuller escreve que "software pode ser considerado um objeto de estudo e uma área de prática para a arte e a teoria do design e as humanidades, para os estudos culturais e estudos da ciência e da tecnologia e para uma corrente reflexiva emergente da ciência da computação". Como uma nova disciplina acadêmica pode ser definida seja através de um objeto de estudo único ou de um novo método de pesquisa, ou de uma combinação dos dois, nesse sentido como devemos pensar os estudos do software? A declaração e Fuller implica que "software" é um novo objeto de estudo que deve ser colocado na agenda das disciplinas existentes e que pode ser estudado por métodos existentes - por exemplo, a teoria de objetos-redes de Latour, a semiótica social ou a arqueologia da mídia.
Creio que há bons motivos para se apoiar essa perspectiva. Penso no software como uma camada que permeia todas as áreas das sociedades contemporâneas. Portanto, se quisermos entender as técnicas contemporâneas de controle, comunicação, representação, simulação, análise, tomada de decisões, nossa análise não pode ser completa se não considerarmos essa camada do software. Isso significa que todas as disciplinas que tratam da sociedade e da cultura contemporânea - arquitetura, design, crítica de arte, sociologia, ciência política, humanidades, estudos da ciência e tecnologia e assim por diante - precisam levar em conta o papel do software e suas conseqüências em qualquer tema que elas investiguem.
Ao mesmo tempo, a obra existente de estudos do software já demonstra que para nos concentrarmos no software em si há a necessidade de uma nova metodologia. Isto é, é útil praticar aquilo que se escreve. Não é por acaso que os intelectuais que escreveram de maneira mais sistemática sobre o papel do software na sociedade e na cultura até hoje ou eram programadores ou estiveram envolvidos em projetos culturais que envolvem basicamente escrever novos softwares:Katherine Hayles, Matthew Fuller, Alexander Galloway, Ian Bogust, Geert Lovink, Paul D. Miller, Peter Lunenfeld, Katie Salen, Eric Zimmerman, MatthewKirschenbaum, William J. Mitchell, Bruce Sterling etc. Em comparação, os acadêmicos sem essa experiência, como Jay Bolter, Siegfried Zielisnki, Manuel Castells e Bruno Latour, não incluíram considerações sobre o software em seus relatos altamente influentes da mídia e da tecnologia modernas.
Na década atual, o número de estudantes de arte mídia, design, arquitetura e humanidades que usam programação ou scripting em seus trabalhos cresceu substancialmente - pelo menos em comparação com 1999, quando eu mencionei pela primeira vez os "estudos do software" em The Language of New Media. Forados setores cultural e acadêmico, há muito mais gente escrevendo software hoje. Em uma medida significativa, isso é conseqüência das novas linguagens de programação e scripting como Processing, PHP e ActionScript. Outro fator importante é a publicação de suas API's pelas maiores companhias da web 2.0 em meados dos anos 2000. (API, ou Application Programming Interface - Interface de Programação de Aplicação, é um código que permite que outros programas de computador acessem serviços oferecidos por uma aplicação. Por exemplo, as pessoas podem usar a API Google Mapas para inserir mapas do Google em seus sites). Essas linguagens de programação e scripting e API's não facilitaram necessariamente a programação. Mas a tornaram muito mais eficaz. Por exemplo, se um jovem designer pode criar um projeto interessante com apenas algumas dúzias de códigos escritos em Processing, em vez de escrever um programa realmente longo em Java, ele/a tem uma maior probabilidade de assumir a programação. De maneira semelhante, se umas poucas linhas de Javascript permitem que você integre toda a funcionalidade dos mapas do Google em seu site, isso é um grande motivo para se começar a trabalhar com Javascript.
Em seu artigo de 2006 que resenhou outros exemplos de novas tecnologias que permitem que as pessoas com poucas ou nenhuma experiência em programação criem novos softwares customizados (como Ning e Coghead), Martin LaMonica escreveu sobre a futura possibilidade de 'uma cauda longa' para as aplicações". Claramente, hoje as tecnologias para o consumidor capturar e editar mídia são muito mais fáceis de utilizar do que as linguagens de programação e scripting de alto nível. Mas não é preciso necessariamente continuar assim. Pense, por exemplo, no que era preciso para montar um estúdio de fotografia e tirar fotos na década de 1850, contra simplesmente apertar um botão em uma câmera digital ou em um celular nos anos 2000. Claramente, estamos muito longe dessa simplicidade na programação. Mas não vejo qualquer motivo lógico para que um dia a programação não se torne igualmente fácil.
Por enquanto o número de pessoas capazes de fazer scripting e programação continua aumentando. Ainda estamos longe de uma verdadeira "cauda longa" para o software, mas o desenvolvimento de software está gradualmente se democratizando. Portanto, é o momento certo para começar a pensar teoricamente em como o software está moldando nossa cultura, e como por sua vez ele é moldado pela cultura. Chegou a hora dos "estudos do software".
Por que não existe uma história cultural do software
O teórico da mídia e da literatura alemãs Friedrich Kittler escreveu que hoje os estudantes devem saber ao menos duas linguagens de software; somente "então eles poderão dizer algo sobre o que é a 'cultura' neste momento". O próprio Kittler programa em uma linguagem assembler que provavelmente determinou sua desconfiança das Interfaces Gráficas do Usuário (GUIs) e de softwares modernos que usam essas interfaces. Em uma medida modernista clássica, Kittler afirmou que precisamos nos concentrar na "essência" do computador - o que para ele significava as bases matemáticas e lógicas do computador moderno e sua história inicial, caracterizada por ferramentas como linguagens assembler.
Embora os estudos do software envolvam todos os softwares, temos especial interesse pelo que chamo de software cultural. Esse termo foi usado antes de maneira metafórica (por exemplo, ver J.M. Balkin, Cultural Software: A theory of Ideology, 2003), mas neste artigo uso o termo literalmente para me referir a programas como Word, PowerPoint, Photoshop, Illustrator, AfterEffects, Firefox, Internet Explorer e assim por diante. O software cultural, em outras palavras, é um subconjunto determinado de softwares de aplicação destinados a criar, distribuir e acessar (publicar, compartilhar e remixar) objetos culturais como imagens, filmes, seqüências de imagens em movimento, desenhos 3D, textos, mapas, assim como várias combinações dessas e de outras mídias. (Enquanto originalmente esses softwares de aplicações se destinavam a rodar no desktop, hoje algumas ferramentas de criação e edição de mídia também estão disponíveis como webware, isto é, aplicações que são acessadas através da web, como Google Docs).
Softwares culturais também incluem ferramentas para comunicação social e compartilhamento de mídia, informação e conhecimento, como navegadores web, clientes de e-mail, clientes de mensagens instantâneas, wikis, citação social, mundos virtuais e assim por diante. Eu também incluiria em software cultural as ferramentas para administração de informação pessoal, como agendas de endereços, aplicações de gerenciamento de projetos e máquinas de busca de desktop. (Essas categorias não são absolutas, mas mudam como o tempo; por exemplo, nos anos 2000 o limite entre "informação pessoal" e "informação pública" desapareceu cada vez mais, conforme as pessoas começaram a colocar rotineiramente suas mídias em sites de redes sociais; de modo semelhante, a máquina de busca Google mostra os resultados na sua máquina local e na web.) E afinal, mas não menos importante, as próprias interfaces de mídia - ícones, pastas, sons e animações que acompanham as interações do usuário - também são software cultural, pois eles mediam as interações das pessoas com a mídia e outras pessoas.
Vivemos em uma cultural do software - isto é, uma cultura em que a produção, distribuição e recepção da maior parte do conteúdo são mediadas por software. No entanto, a maioria dos profissionais de criação não sabe nada sobre a história intelectual do software que usam diariamente - seja Photoshop, GIMP, Final Cut,AfterEffects, Blender, Flash, Maya ou Max.
De onde veio o software cultural contemporâneo? Como suas metáforas e técnicas se formaram? E, para começar, porque ele foi desenvolvido? Realmente não sabemos. Apesar das declarações comuns de que a revolução digital é pelo menos tão importante quanto a invenção da imprensa, somos amplamente ignorantes de como foi inventada a parte principal dessa revolução - isto é, o software cultural. Se você pensar nisso, é inacreditável. Todo mundo no setor de cultura sabe sobreGuttenberg (impressora tipográfica), Brunelleschi (perspectiva), os irmãos Lumière, Griffith e Eisenstein (cinema), Le Corbusier (arquitetura moderna), Isadora Duncan (dança moderna) e Saul Bass (animação gráfica). (Se por acaso você não conhecia algum desses nomes, tenho certeza de que você tem outros amigos culturais que os conhecem). No entanto, poucas pessoas ouviram falar de J.C. Licklider, Ivan Sutherland, Ted Nelson, Douglas Engelbart, Alan Kay, NicholasNegroponte e seus colaboradores, que, entre 1960 e 1978, aproximadamente, transformaram gradualmente o computador na máquina cultural que é hoje.
Notavelmente a história do software cultural ainda não existe. O que temos são alguns livros, principalmente biográficos, sobre algumas das figuras chaves e laboratórios de pesquisa como Xerox Parc ou Media Lab - mas não há uma síntese abrangente que delineie a árvore genealógica do software cultural. E também não temos estudos detalhados relacionando a história do software cultural à história da mídia, teoria da mídia ou história da cultura visual.
As modernas instituições de arte - museus como MoMA e Tate, editoras de livros de arte como Phaidon e Rizzoli etc. - promovem a história da arte moderna. Hollywood igualmente se orgulha de sua história - as estrelas, os diretores, os cineastas e os filmes clássicos. Então, como podemos compreender a negligência da história da computação cultural pelas instituições culturais e da própria indústria de computadores? Por que, por exemplo, o Vale do Silício não tem um museu do software cultural? (O museu da História do Computador em Mountain View, Califórnia, tem uma grande exposição permanente que se concentra em hardware, sistemas operacionais e linguagens de programação - mas não na história do software cultural).
Acredito que o motivo principal tem a ver com a economia. Originalmente mal-entendida e ridicularizada, a arte moderna com o tempo se tornou uma categoria de investimento legítima - na verdade, em meados dos anos 2000, as pinturas de vários artistas do século 20 valiam mais que as dos mais famosos artistas clássicos. De modo semelhante, Hollywood continua obtendo lucros de filmes antigos que são reeditados em novos formatos. E a indústria de TI? Ela não obtém lucros dos softwares antigos - e portanto nada faz para promover sua história. É claro que versões contemporâneas do Microsoft Word, Adobe Photoshop, Autodesk Autocad e muitas outras aplicações culturais populares são aperfeiçoamentos das primeiras versões que muitas vezes datam dos anos 1980, e as empresas continuam lucrando com as patentes registradas das novas tecnologias usadas nessas versões originais - mas em comparação com os videogames dos anos 1980, essas primeiras versões dos softwares não são tratadas como produtos separados que podem ser reeditados hoje. (A princípio posso imaginar a indústria de software criando todo um novo mercado de versões antigas de softwares ou aplicações que em certo momento foram importantes mas que não existem mais hoje em dia - por exemplo, oAldus Pagemaker. Na verdade, como a cultura do consumo sistematicamente explora a nostalgia dos adultos pelas experiências culturais de sua adolescência e juventude, fazendo novos produtos dessas experiências, é surpreendente que ainda não exista um mercado das antigas versões de software. Se eu utilizava diariamente o MacWrite e o MacPaint em meados dos anos 1980, ou Photoshop 1.0 e 2.0 em 1990-1993, acho que essas experiências fizeram parte de minha "genealogia cultural", assim como os filmes e a arte que eu via na época. Embora eu não esteja necessariamente defendendo a criação de mais uma categoria de produtos comerciais, se os primeiros softwares estivessem disponíveis em simulação, eles catalisariam o interesse cultural pelo software, assim como a ampla disponibilidade dos primeiros jogos de computador alimenta o campo de estudos dos videogames).
Como a maioria dos teóricos até hoje não considerou o software cultural como tema isolado, diferente de "nova mídia", "arte mídia", "internet", "ciberespaço", "cibercultura" e "código", carecemos não apenas de uma história conceitual do software de edição de mídia, mas também de pesquisas sistemáticas de suas funções na produção cultural. Por exemplo, como a utilização da aplicação popular de animação e composição After Effects reformulou a linguagem das imagens em movimento? Como a adoção do Alias Maya e outros pacotes de 3D por estudantes de arquitetura e jovens arquitetos nos anos 1990 influenciou de maneira semelhante a linguagem arquitetônica? E a coevolução das ferramentas de design para a web e a estética dos sites - desde o HTML cru de 1994 até os sites em Flash com um rico visual, cinco anos depois? Você encontrará menções freqüentes e discussões rápidas dessas questões e outras semelhantes em artigos e conferências, mas até onde eu si não houve um estudo extenso sobre qualquer desses assuntos. Muitas vezes livros de arquitetura, animação gráfica, design gráfico e outros campos do design discutem rapidamente a importância das ferramentas de software para permitir novas possibilidades e oportunidades, mas essas discussões geralmente não são levadas adiante.
(O presente texto foi publicado no catálogo do Festival Internacional de Linguagem Eletrônica - FILE 2008 e faz parte do seu novo livro Understanding Metamedia (Software Studies in Action), MIT Press.