Pesquisadores,
mídia
artistas
e
jornalistas
tem escrito cansativamente sobre “novas mídias” desde os anos 1990. Em muitas dessas discussões um único termo acabou por representar todo esse conjunto de novas possibilidades tecnológicas, expressivas, comunicativas e as novas formas de comunidades e sociabilidades que foram desenvolvidas em torno do computador e da Internet. Esse termo é o “digital”. Este termo recebeu seu “selo” de aprovação, vamos assim dizer, quando o diretor do Media Lab do MIT, Nicholas Negroponte, fez uma seleção de seus artigos para a Revista Wired e os publicou no livro Vida Digital (Companhia das Letras, 1995). Quinze anos depois, esse termo ainda domina, tanto na cultura popular quanto na acadêmica, a compreensão sobre o que são as “novas mídias”.
Em 2 de março de 2011, quando procurei no Google os termos "digital", "interativo",
e
"multimídia" a primeira pesquisa retornou 1.390.000.000 resultados;
os outros dois retornaram algo entre 276.000.000 e 456.000.000 cada. Buscas no Google Acadêmico produziram resultados semelhantes: 3.830.000 para "digital", 2.270.000 para "interativo" e 1.900.000 para "multimídia". Baseado nesses números, Negroponte parece estar certo.
Eu não preciso convencer ninguém hoje em dia sobre os efeitos transformadores da internet, da mídia participativa e da computação móvel já ocorridos na cultura humana e na sociedade, incluindo aí a criação, o compartilhando e o acesso aos artefatos e meios de comunicação. O que pretendo neste artigo é salientar a centralidade de um outro elemento da Tecnologia da Informação (TI) que até recentemente recebeu menos “atenção” teórica na definição do que vem a ser “mídia”. Esse elemento é o software.
Nenhuma das técnicas de autoração e edição das “novas mídias”, que associamos com os computadores, é simplesmente o resultado de uma mídia do “ser digital”. As novas formas de acesso à mídia, distribuição, análise, geração e manipulação só existem devido ao software. O que significa que elas são o resultado de escolhas específicas realizadas por indivíduos, empresas e consórcios que desenvolvem o software. Algumas dessas escolhas dizem respeito a princípios básicos e protocolos que regem o ambiente da computação moderna: por exemplo, os comandos "cortar e colar”, implementados em todos os softwares que rodam sob uma interface gráfica de usuário (ou em interfaces de mídia mais recentes, tais como o iOS), ou os hiperlinks com uma só opção de clique nas tecnologias web. Outras opções são específicas para determinados tipos de software (por exemplo, para aplicações de ilustração) ou em pacotes individuais de software.
Se uma técnica particular de um software, ou uma metáfora de interface que aparece em uma determinada aplicação se torna popular para seus usuários, muitas vezes as veremos reproduzidas em outras aplicações. Por exemplo, depois que o Flickr adicionou as “nuvens de tags” à sua interface, elas logo se tornaram uma ferramenta padrão em inúmeros websites. O aparecimento de técnicas particulares nas aplicações também pode ser observado em relação aos aspectos econômicos da indústria do software – por exemplo, quando uma companhia de software compra uma outra, ela provavelmente mesclará seus pacotes existentes com os software da companhia que ela comprou.
Todos essas mutações e “novas espécies” técnicas de softwares são sociais no sentido de que elas não surgem simplesmente da cabeça de um indivíduo ou de uma propriedade “essencial” de um computador ou rede digital. Elas vem de softwares desenvolvidos por grupos de pessoas e anunciadas para um grande número de usuários.
Em resumo: as técnicas e convenções do computador como metamídia e todas as ferramentas disponíveis nos aplicativos dos softwares não são o resultado de uma mudança tecnológica que passa da mídia “analógica” para a “digital”. Elas são o resultado do software que está em processo de evolução constante; além disso, há também as forças do mercado e suas restrições.
Isso significa que os termos “mídia digital” e “novas mídias” não capturam muito bem a “singularidade” da “revolução digital”. Porque? Porque todas as novas qualidades da “mídia digital” não estão situadas “dentro” dos objetos de mídia. Na verdade, todas elas existem “fora” – como comandos e técnicas de visualizadores de mídias, de aplicações de clientes de e-mail, animações, composição, máquinas de jogos e todas outras “espécies” de software. Assim, enquanto as representações digitais tornam, a princípio, possível trabalhar com imagens, textos, formas, sons e outros tipos de mídias, é o software que determina o que podemos fazer com elas. Dessa forma, enquanto nós estamos de fato “sendo digitais”, as formas concretas desse “ser” advém do software.
Aceitar a centralidade do software coloca em questão um conceito fundamental na estética moderna e na teoria das mídias – aquele relativo “às propriedades de um meio”. O que significa fazer referência a um “meio digital” como ele possuindo “propriedades”? Por exemplo, faz sentido falarmos das propriedades originais das fotografias digitais, textos eletrônicos, websites ou dos jogos eletrônicos?
Ou o que dizer sobre as formas mais básicas de mídia – textos, imagens, vídeos, sons ou mapas? Obviamente essas formas de mídia tem diferentes capacidades representativas e expressivas; produzem diferentes efeitos emocionais.; são processadas por diferentes redes neuronais e elas de certa maneira correspondem a diferentes tipos de processos e representações mentais. Essas diferenças tem sido discutidas por milênios – da filosofia antiga, da teoria estética, da arte moderna até a neurociência contemporânea. Por exemplo, sons, vídeo e animação podem representar processos temporais, linguagens podem ser utilizadas para especificar relações lógicas e assim por diante. O software não altera muita coisa aqui.
Contudo, o que ele radicalmente altera é como as instâncias concretas dessas formas de mídias (e suas várias combinações) funcionam na prática. O resultado é que qualquer dessas instâncias perde muito de sua identidade original. O que experienciamos de particular como usuários de partes de mídias advém dos softwares utilizados para criar, editar, apresentar e acessar esse conteúdo.
Por um lado, softwares interativos acrescentam novos conjuntos de capacidades compartilhadas por todas essas formas de mídia: editar através da seleção de partes específicas, separação entre estrutura de dados e a sua apresentação, hiperligação, visualização, “procurabilidade”, “achabilidade” etc. Por outro lado, quando lidamos com um objeto cultural digital particular, suas “propriedades” podem variar dramaticamente dependendo da aplicação de software que utilizamos para interagir com esse objeto.
Vejamos esse exemplo: uma fotografia. Na era analógica, depois que a fotografia era impressa, o que essa fotografia representava/expressava estava contido na impressão. Observar essa fotografia em casa ou em uma exposição não fazia nenhuma diferença. Certamente um fotógrafo poderia produzir uma cópia diferente com uma quantidade maior de contraste e dessa forma alterar o conteúdo da imagem original – mas isso exigia criar toda um novo objeto físico (ou seja, uma nova impressão da fotografia).
Vamos analisar agora a fotografia digital. Nós podemos tirar uma foto com uma câmera ou com um celular, nós podemos escanea-la de uma revista antiga, nós podemos fazer o seu download de um arquivo online etc. – essa parte não interessa. Em todos os casos nós acabaremos com um arquivo digital que contém uma matriz de valores de cores de pixels, um cabeçalho no arquivo que vai especificar a dimensão da imagem, informações sobre a câmera e as condições de captura da foto (como a exposição) e outros metadados. Em outras palavras, no final das contas teremos o que habitualmente chamamos de “mídias digitais” – um arquivo contendo números que significam alguma coisa para nós (os formatos de arquivos reais podem conter informações muito mais complexas, mas essa descrição serve para capturar a essência dos conceitos).
Contudo, a não ser que você seja um programador, você nunca lida diretamente com esses números - em vez disso, você interage com arquivos de mídias digitais através de alguma aplicação de software. E aqui vem a parte essencial. Dependendo de qual software você utiliza para acessar o arquivo, o que você pode fazer com esse mesmo arquivo digital pode mudar radicalmente. Um software de e-mail no seu celular pode somente mostrar essa foto e nada mais. Os visualizadores gratuitos de mídia ou players que rodam no desktop ou na web normalmente oferecem mais funções. Por exemplo, uma versão desktop do Picasa da Google inclui “cortar”, auto seleção de cor, redução de olhos vermelhos, uma variedade de filtros (foco, brilho etc.) e inúmeras outras funções. Ele pode também mostrar a mesma foto colorida ou preto e branco sem nenhuma modificação no arquivo em si. Ele também permite que você aplique zoom na foto várias vezes de uma maneira que os telefones celulares não podem.
Concluindo, se eu abro a mesma foto em uma aplicação profissional como o Photoshop, eu posso fazer muito mais coisas. Por exemplo: eu posso programar o Photoshop a combinar a foto com várias outras, substituindo certas cores, tornando visível suas estruturas lineares aplicando filtros de detecção de bordas ou borrar a foto de várias formas e assim por diante.
Como esse exemplo ilustra, dependendo do software que eu utilizo, as “propriedades” dos objetos das mídias podem mudar dramaticamente. Exatamente o mesmo arquivo com os mesmos conteúdos assumem uma variedade de identidades dependendo do software utilizado pelo usuário.
O que essa descoberta significa em relação à persistente primazia do termo “digital” na compreensão das “novas mídias”? Vou responder isso o mais claro e diretamente possível: não existe essa tal “mídia digital”. Só existe Software – como aplicados aos dados de mídia (ou “conteúdo”).
Reformulando: para usuários que só podem interagir com o conteúdo das mídias através das aplicações de software, a “mídia digital” não possui nenhuma propriedade original em si mesma. O que costumava ser denominado de “propriedades das mídias” são agora operações e permissões definidas pelo software.
Se você quer escapar da “prisão-casa” do software – ou ao menos compreender melhor o que as mídias são hoje em dia – pare de fazer download de Apps (aplicativos) criados por outros. Em vez disso, aprenda a programar – e ensine programação para seus alunos.
____________________________
Esse texto é parte do novo rascunho do livro Software Takes Command (no prelo).