Lev Manovich, 2013
Tradução: Cicero Inacio da Silva
No prelo: Journal of Visual Culture, edição especial “Marshall McLuhan’s Understanding Media: The Extensions of Man @ 50" (Primavera de 2014) .
(Nota: algumas partes deste texto estão em meu livro Software Takes Command, Bloomsbury Academic, 2013)
Será que Marshall McLuhan esqueceu dos computadores? Em sua principal obra, Understanding Media: The Extensions of Man (1964) a palavra "computador" aparece 21 vezes, e algumas dessas referências são à "era do computador". Contudo, apesar dessas referências, a sua percepção acerca dos computadores não teve efeito significativo sobre o seu pensamento. O livro contém duas dezenas de capítulos, cada um dedicado a um determinado meio - que para McLuhan vão da escrita às estradas, até os carros e a televisão (o último capítulo do livro, "Automação", aborda o papel dos computadores no controle industrial, mas não os seus outros papéis).
As razões para esta omissão não são difíceis de entender. As teorias de McLuhan se concentraram nos meios que foram amplamente empregados por pessoas comuns na história da humanidade. Em 1964 os meios de comunicação populares de representação e de comunicação ainda não incluíam os computadores. Embora até o final da década de 1960 os sistemas de computadores aplicados ao design, animação e processamento de texto tenham sido desenvolvidos (em conjunto com a primeira rede de computação que se tornou a Internet), esses sistemas eram usados apenas por pequenas comunidades de cientistas e profissionais. Somente após a introdução do PC, em 1981, é que essas invenções começaram a ser disseminadas para as massas.Como resultado, o software surgiu como a principal nova forma de mídia fora do tempo (digo "software" em vez de "computadores digitais", porque estes últimos são utilizados para fazer tudo em nossa sociedade, e muitas vezes suas utilizações não envolvem softwares visíveis para os usuários comuns - como os sistemas dentro de um carro). Para além de certas áreas culturais, como o artesanato e as obras de arte, o software substituiu um diversificado leque de tecnologias físicas, mecânicas e eletrônicas utilizadas antes do século XXI para criar, armazenar, distribuir, acessar artefatos culturais e de comunicação entre pessoas. Quando você escreve um artigo no Word, você está usando software. Ao escrever um post de blog no Blogger ou WordPress, você está usando software. Quando você tuíta, posta mensagens no Facebook, pesquisa nos milhões de vídeos no YouTube ou lê textos no Scribd, você utiliza softwares (especificamente sua categoria conhecida como "aplicações web" ou "webware" - softwares que são acessados via web por meio de navegadores e que ficam hospedados em servidores).
As teorias de McLuhan cobriram as principais "novas mídias" de sua época - televisão, jornais e revistas com fotos coloridas, publicidade e cinema. Assim como esses meios, a mídia software levou décadas para se desenvolver e amadurecer até chegar ao ponto onde ele hoje domina a nossa paisagem cultural. De que maneira o uso de aplicativos de criação de mídia profissionais influenciam a imaginação visual contemporânea? De que forma os softwares oferecidos por serviços de mídia social, como o Instagram, modelam as imagens que as pessoas capturam e compartilham? De que maneira os algoritmos específicos do Facebook, aqueles que decidem quais atualizações realizadas por nossos amigos serão mostradas em nosso feed de notícias, moldam a maneira como compreendemos o mundo? De modo mais geral , o que significa viver em uma "sociedade do software"? Em 2002 eu estava em Colônia, na Alemanha, e fui para a melhor livraria da cidade dedicada a livros de ciências humanas e artes. Sua seção de "novas mídias" continha centenas de títulos. No entanto, nem um único livro era dedicado ao motor essencial da "era do computador": o software. Eu comecei a folhear os índices, livro após livro: nenhum deles continha a palavra "software". Como isso era possível? Hoje, graças aos esforços dos meus colegas nesse novo campo acadêmico dos "estudos de software", a situação está gradualmente melhorando. No entanto, quando olhei para os índices de obras de importantes teóricos da mídia do nosso tempo publicados no ano passado, ainda não encontrei a entrada para o termo "software".
O software, como uma categoria teórica, ainda é invisível para a maioria dos acadêmicos, artistas e profissionais da cultura interessados em TI e seus efeitos culturais e sociais.
O Software é a interface para a nossa imaginação e para a do mundo - a linguagem universal através da qual o mundo fala e também o motor universal por meio do qual o mundo funciona. Outro termo que podemos usar na conceituação sobre o software é o de dimensão (pense nas três dimensões que usamos para definir o espaço). Podemos dizer que no final do século XX a humanidade fundamentalmente acrescentou uma nova dimensão à toda a "cultura" - a do software.Por que essa conceituação é útil? O "Software Cultural" não é simplesmente um novo objeto, não importa quão grande e importante, que foi abandonado no espaço do que chamamos "cultura". E enquanto nós certamente podemos estudar "a cultura do software" - as práticas de programação, os valores e ideologias de programadores e empresas de software, as culturas do Vale do Silício e de Bangalore etc. - se apenas fizermos isso, não vamos compreender a real importância do software. Assim como o alfabeto, a matemática, a indústria gráfica, o motor a combustão, a eletricidade e os circuitos integrados, o software se reorganiza e remodela todas as coisas às quais ele é aplicado, ou pelo menos, têm potencial para fazer isso. Assim como a inserção de uma nova dimensão adiciona novas coordenadas para cada ponto no espaço, “acrescentando" o software à cultura, alteramos a identidade das coisas de que cultura é feita. Nesse sentido, o software é um exemplo perfeito do que McLuhan quis dizer quando escreveu que "a mensagem de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, de ritmo ou de padrão que ela introduz nos assuntos humanos".
No entanto, o desenvolvimento e a hegemonia atual do software não se limita a ilustrar perfeitamente os pontos que McLuhan analisou há 50 anos. Ela também desafia estas idéias. Aqui está como.
Nas primeiras décadas, a escrita de novos softwares era um campo para profissionais. No entanto, já na década de 1960, Ted Nelson e Alan Kay propuseram que os computadores poderiam tornar-se um novo tipo de meio cultural. Em seu paradigma, os designers criariam ferramentas de programação e os usuários poderiam inventar novos meios de utilizar essas ferramentas. Nesse sentido, Alan Kay chamou os computadores de a primeira metamídia, cujo conteúdo é "uma ampla variedade de mídias já existentes e que ainda não foram inventadas".
Esse paradigma teve profundas consequências em como o “meio” software funciona hoje em dia. Uma vez que os computadores e a programação foram suficientemente democratizadas, algumas das pessoas mais criativas do nosso tempo começaram a se concentrar na criação de novas estruturas e técnicas ao invés de usar as já existentes para produzir "conteúdos". Durante os anos 2000, estendendo o domínio da metamídia à escrita de novos códigos (softwares), plugins, bibliotecas de programação, entre outras ferramentas, esse fato acabou tornando-se uma nova forma de atividade cultural de ponta.
O GitHub, por exemplo, uma plataforma popular para o compartilhamento e desenvolvimento de ferramentas de código aberto, abriga centenas de milhares de projetos de software. Atualmente criar novas ferramentas de software é atividade fundamental para as áreas de humanidades digitais e software art . E, certamente, as principais "empresas de mídia" do nosso tempo, tais como Google, Facebook, Instagram etc. não criam conteúdo. Em vez disso, constantemente aperfeiçoam e expandem suas ferramentas de software utilizadas por centenas de milhões de pessoas para produzir conteúdo e se comunicar.
Nesse sentido, é hora de atualizar Understanding Media. Hoje em dia já não é o meio que é a mensagem. É o software que é a mensagem. E a expansão constante do que os humanos podem expressar, e como eles podem se comunicar, a partir de agora é o nosso “conteúdo”.